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Capítulo Brasileiro da Internacional Association for the Study of Pain - IASP


Dor Pélvica Crônica em Homens Transgêneros

A dor crônica é um fenômeno complexo que demanda um olhar cuidadoso e amplo dos profissionais de saúde, pois realmente contempla o ser humano como um ser biopsicossocial. Assim, neste olhar, já é sabido que a questão central da dor crônica é o sofrimento, sofrimento este proveniente tanto dos desagradáveis sintomas nociceptivos como também dos componentes dolorosos impactantes como: a percepção do fenômeno doloroso (o que ele significa, como parece, qual a ameaça trazida por ele, ao que ele é associado, quais as crenças que surgem a partir dele, qual sua representação cognitiva, etc.) e a reação diante da dor (emoções despertadas por ela: medo, raiva, tristeza, angústia, ansiedade, etc.), lembrando que tanto a percepção quanto a reação são determinadas pelo indivíduo e, portanto, têm características absolutamente subjetivas e pessoais.

A dor pélvica crônica (DPC) é a dor que persiste por no mínimo 6 meses, localizada na região delimitada pela cicatriz umbilical até a raiz da coxa, tanto anterior quanto posterior, onde encontram-se estruturas musculoesqueléticas, nervos, todas as estruturas do sistema reprodutivo, urinário e alguns órgãos gastrointestinais; afeta tanto o sexo biológico feminino quanto o masculino, impacta a qualidade de vida, a funcionalidade diária e a saúde mental e está, geralmente, associada a quadros ansiosos e depressivos.

De acordo com Barbosa et. al. (2023), a DPC apresenta uma fisiopatologia complexa ligada a vários distúrbios, como neuroendócrinos, neurológicos e estresse, além de poder existir a sobreposição de sintomas atribuída a mecanismos como a sensibilidade cruzada víscero-visceral (quando a atividade em um órgão pode hipersensibilizar outro) fazendo com que um longo tempo de exposição ao estímulo doloroso leve a sensibilização central gerando uma percepção álgica alterada no sistema nervoso central(SNC). Os autores enfatizam que 60% das mulheres afetadas nunca receberam um diagnóstico definitivo e que é vital uma abordagem abrangente para DPC cuja natureza é multifatorial.

O objetivo deste artigo é trazer uma reflexão para a contemporaneidade e a necessidade de ampliar o olhar para o cuidado com as peculiaridades e compreensão de uma realidade cada vez mais presente nos consultórios: homens transgêneros com DPC, ou seja, pessoas que nascem biologicamente XX, mas não se percebem, sentem e identificam como mulheres e, portanto, buscam tratamentos hormonais e cirúrgicos para que seus corpos assumam o gênero masculino. A não identificação com o sexo de nascimento já pode nos sinalizar sobre a “dor” que estas pessoas trazem consigo desde cedo, a priori não uma dor física, mas a experiência precoce de um espectro amplo de sofrimento. Neste sentido, o presente trabalho busca ampliar e refletir sobre esta temática a fim de colaborar no manejo da DPC sentida pelo grupo de homens transgêneros que buscam intervenções hormonais e cirúrgicas, assim como verificar as possíveis consequências álgicas destes procedimentos.

Oliveira et al. (2023) informam que Guilherme Almeida nomeou como a “complexa aquarela das masculinidades” para se referir as diferentes formas de manifestações dos homens transgêneros: o primeiro grupo é representado por aqueles que preservam signos sociais femininos e não querem abandoná-los, mesmo se vestindo e usando nomes masculinos; o segundo grupo é composto por pessoas que assumem uma aparência social masculina (corte de cabelo, vestimenta, apelidos, nome),mas não fazem qualquer intervenção hormonal ou cirúrgica; o terceiro grupo é formado por aqueles que participam ativamente de movimentos públicos devido a não aceitação do binarismo de gênero (homem/mulher) ou a heteronormatividade, desejam a modificação do corpo através da testosterona, mas não pensam em cirurgias; quarto grupo (o foco do presente trabalho) engloba aqueles que fazem mudanças corporais através de hormonioterapia e cirurgias, buscam o reconhecimento jurídico do nome e sexo e, em função do processo transexualizador adotado há 10 anos pelo SUS (Portaria nº 2.803 de 19 de novembro de 2013), tem se tornado mais visível na cena brasileira.

A Organização Mundial de Saúde (OMS), durante a 72ª Assembleia Mundial de Saúde em 2018, retirou do CID-11 a transexualidade como uma condição de transtorno mental. Oliveira et al. (2023) realizaram um estudo qualitativo de produções científicas entre 2018 e 2021, nas principais bases de dados, sobre pessoas transgêneros e masculinidades no Brasil com um levantamento inicial de 192 estudos entre artigos, teses e dissertações que devido a critérios de inclusão foram reduzidos a análise de 10 estudos, porém o tema DPC não aparece em nenhum momento neste importante levantamento brasileiro, assim como nada relacionado a dor.

Para o presente estudo foi realizada uma pesquisa na plataforma PubMed em novembro de 2023 com a busca “chronic pelvic pain”. Apareceram 8.103 resultados sendo o mais recente um estudo piloto de tratamento com metotrexato(MTX) em nanopartículas lipídicas (LDE) para pacientes com endometriose infiltrativa profunda. Ao acrescentar a palavra “transgender”, resultando em “chronic pelvic pain transgender” o número reduz para 3. Para “transgender chronic pain” foram encontrados 28 trabalhos sendo que a dor crônica é encontrada em apenas um deles cujo estudo transversal multicêntrico é o impacto dos problemas de sono na qualidade de vida de indivíduos trans (Auer et. al., 2017). Neste artigo foram avaliados 154 indivíduos através da aplicação do questionário de avaliação global da dor (GPQ) e a dor crônica apareceu nos 72 homens transgêneros como um preditor independente que afetou a QV apenas desta amostra, cuja minoria apresentava dor genital. Na busca “transgender testosterone chronic pain” apareceram 4 resultados sendo que 2 abordaram a enxaqueca e 1 a fibromialgia; ao buscar “transgender surgery chronic pain” existem 6 resultados, porém nenhum abordando o tema específico da dor crônica.

No Portal Regional da BVS não aparece nenhum trabalho ao se procurar “transgender chronic pain” ou “transgender pain” e 13 trabalhos na busca de “transgender”, sendo que nenhum deles traz dor crônica como tema. Uma pesquisa através do Google apresentou um estudo piloto descritivo transversal brasileiro interessante que investigou sintomas urogenitais, anorretais e sexuais em transgêneros (Souza, 2021), através de uma amostra de 19 pessoas, sendo 13 homens transgêneros. Foram aplicados questionários online, preservando assim a liberdade de cada entrevistado. A primeira etapa teve como objetivo a caracterização da amostra e a segunda parte disponibilizou questionários específicos, como PFDI-20, para avaliar as disfunções do assoalho pélvico e como as queixas poderiam incomodar; um questionário para avaliar a função sexual escolhido de acordo com o órgão genital do entrevistado, portanto os homens transgêneros responderam ao índice de Função Sexual Feminina (FSFI) no qual no domínio “dor” apresentaram um escore alto, provavelmente pela atrofia vaginal devido ao uso de testosterona (deposteron) que leva ao afinamento da parede vaginal ao longo do tempo e a diminuição da lubrificação. Na análise geral do PDFI-20 foram observados escores baixos no questionário o que demonstrou que a amostra não apresentava distúrbios significativos no assoalho pélvico, porém foi revelada uma diferença significativa entre os grupos (homens trans x mulheres trans) sinalizando que os homens trans apresentam dificuldade no esvaziamento da bexiga e dor. Neste estudo a questão da função sexual foi avaliada como ruim para ambos os grupos, sendo a satisfação o pior domínio.

Tollinche, Rosa, Van Rooyen (2021) trazem dados de estudos de 2018 e 2016 que revelam a existência de cerca de 1 milhão de pessoas que se identificam como transgêneros nos EUA; ilustram algumas técnicas cirúrgicas para a afirmação de gênero e enfatizam a necessidade de cuidados de saúde inclusivos para pacientes e seus familiares com práticas de cuidados centrado na pessoa. A estatística apresentada pelos autores provavelmente aumentou desde então. Trata-se de uma realidade cada vez mais atual e que demanda informações e atualizações a fim de que possamos nos munir das melhores condições para atender nossos pacientes.

A partir dos levantamentos aqui realizados, apesar do ínfimo número de estudos, parece que a incidência da dor é maior no homem transgênero, corroborando a epidemiologia geral da dor. Talvez o uso da testosterona seja um fator de piora, mas ainda muitos estudos precisam ser realizados. De qualquer maneira, vale refletir sobre os indivíduos transgêneros e o sofrimento como uma condição prévia que provavelmente contribui com um organismo tendenciado a dor. A temática da sexualidade, a disforia de gênero, autoaceitação, questões emocionais, culturais, familiares, crenças, desejos, relacionamentos dentre tantos outros aspectos devem ser considerados para avaliação global da cronicidade da dor pois, se a dor por si só é um tema complexo, quando envolve sexualidade e não aceitação do gênero biológico esta temática torna-se ainda mais complexa e delicada.

COMITÊ DE DOR UROGENITAL

Andreza Wurbza - Psicóloga – São Paulo/SP

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Auer MK et al. High impact of sleeping problems on quality of life in transgender individuals: A cross-sectional multicenter study. PLoS One, 12(2), 2017.

2. Barbosa PMM et al. Parameters and results of non-invasive neuromodulation in the management of chronic pelvic pain: integrative literature review. BrJP, São Paulo, 6 (3):313-9, jul-sep 2023.

3. Oliveira AS et al. Revisão da literatura: estudos sobre pessoas transgêneros e masculinidades no Brasil. Research, Society and Development, v.12, n.4, 2023.

4. Souza AR et al. Função do assoalho pélvico em pessoas transgêneros: uma análise das funções urogenitais, anorretais e sexuais. Revista Brasileira de Sexualidade Humana, v.32, n.1, 2021.

5. Tollinche LE, Rosa WE, Van Rooyen CD. Perioperative considerations for person-centered gender affirming surgery. Adv Anesth, 39: 77-96, Dec 2021.


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